Delírio

Eles podem ver o pequeno parque
local iluminado pelo Sol
cidade cortada por prédios.

Ali, poetas por todos os lados
árvores com raízes podres
pássaros sufocados pelas cinzas.

Jovens dançando no embalo da música
Dum tum tsi tsi tsi tum dum tsi tsi tsi
Onomatopeia sinfónica.

Garrafas espalhadas pelo chão
Pontas de cigarros amassadas
Cheiro estranho de raízes.

Macedônia, Grécia, Trácia
Inversão deles em
folhas entrelaçadas.

Olhos queimando enxergam sem ver
Vermelhos, rosto pálido – sono
Cérebro expande ecoando

Luz, tempo, som, imagem
efeitos distorcidos
corta!

Percepção foto-elétrica
Cruzando os ares
Voz grave.

Chamando pelo nome próprio
Câmera lenta
Queda!

Fragmentação corporal contínua
pulmões dilatados, ar!
cof cof cof

Rimbaud, Fredrich, Benjamin
estavam próximos
mas dissolveram no ar .

A Vocês!

Vocês que vão de orgia em orgia, vocês
Que têm mornos bidês e W.C.s,
Não se envergonham ao ler os noticiários
Sobre a cruz de São Jorge nos diários?

Sabem vocês, inúteis, diletantes
Que só pensam encher a pança e o cofre
Que talvez uma bomba neste instante
Arranca as pernas do tenente Pietrov?

E se ele, conduzido ao matadouro,
Pudesse vislumbrar, banhado em sangue,
Como vocês, lábios untados de gordura,
Lúbricos trauteiam Sievieriânin!

Vocês, gozadores de fêmeas e de pratos,
Dar a vida por suas bacanais?
Mil vezes antes no bar às putas
Ficar servindo suco de ananás.

Maiakóvski – 1915

O que é Punk?

“A verdadeira escola para o povo e para todos os homens feitos é a vida. A única autoridade onipotente, simultaneamente natural e racional, a única que poderemos respeitar, será aquela do espírito coletivo e público de uma sociedade fundada no respeito mútuo de todos os seus membros.
Sim, eis uma autoridade que não é, de forma alguma, divina, mas inteiramente humana, e diante da qual nós nos inclinaremos de coração, certos de que, longe de subjugar os homens, ela os emancipará.
Ela será mil vezes mais poderosa, estejais certos, do que todas as vossas autoridades divinas, teológicas, metafísicas, políticas e jurídicas, instituídas pela Igreja e pelo Estado; mais poderosa que vossos códigos criminais, vossos carcereiros e carrascos.”
Bakunin* (ver Estante)

Depois dessa breve citação de Mikhail Alexandrovitch Bakunin (Tver, 1814 – Berna 1876), revolucionário russo, que contribuiu com seus escritos esparsos para o desenvolvimento da teoria anarquista, divirtam-se com esse belo documentário sobre o movimento punk no Brasil.

Descrente?

Citar

“Descrente? Engano. Não há ninguém mais crédulo que eu. E esta exaltação, quase veneração, com que ouço falar em artistas que não conheço, filósofos que não sei se existiram!
Ateu! Não é verdade. Tenho passado a vida a criar deuses que morrem logo, ídolos que depois derrubo – uma estrela no céu, algumas mulheres na terra…”

Graciliano Ramos; “Caétes”; Livraria Martins Fontes; 1961

Lembra-te que do pó viestes e ao pó, hás de retornar

Não lembro ao certo, mas uma noite estava em casa e precisava urgentemente de um cigarro. Olhei por todos os cômodos procurando algum para que fosse devidamente utilizado e não ficasse por aí de bobeira num mundo violento. Lá pelas tantas desisti da busca eterna e resolvi descer até o botequim mais próximo e gastar meu suado dinheiro com coisas inúteis e viciantes.
Descobri que cigarro não é igual a cerveja: quem nunca chegou em casa num dia quente, abriu a geladeira e por obra do acaso encontrou uma lata cheia no fundo da prateleira? Pois bem, cigarros tem vida própria e não ficam presos ao dono.
Fui até o bar e comprei meu maço de cigarros. Voltava tranquilamente pela calçada e aproveitava para ver as pessoas caminhando de um lado pro outro.
Em certo momento, ao meu lado apareceu um rapaz que segurava uma sacola na mão:

– Quer um tiro!?

Nessa hora, eu gelei e comecei a apalpar os bolsos procurando alguma coisa para dar a ele: algo que valesse minha vida.

– Não tenho nada, cara… Só umas moedinhas e um maço.
– Não seja idiota – ele respondeu- Estou falando de pó!
– Ah… Cocaína!- falei um pouco alto.
– Fala baixo, véio! Quer me foder!?… Vai querer ou nem?
– Nem, cara… Hoje eu to bem tranquilo…
– Beleza, cara! Se quiser é só subir até a próxima rua e me procurar…
– Opa! Valeu, fera!
– Falou!

E foi assim: pensei que fosse uma coisa e era outra. O que mais me assustou foi a sacola na mão dele e o jeito que ele disse “você quer um tiro”…
Uma combinação nada amistosa de imagem e discurso.
Já dentro do prédio, enquanto subia pelas escadas ri da situação e lembrei de uma passagem bíblica: “Lembra-te que do pó viestes e ao pó, hás de retornar”, ou algo parecido com esse gênero de conduta cristão. Esse tão famigerado pó…
Contudo, faz um longo tempo que não piso em solo sagrado. Não há necessidade de estabelecer alguma relação entre o cristianismo e os vícios da vida. Então prefiro para essa situação uma música do The Clash chamada “Hateful”, que combina tanto com o bairro quanto com a vida de qualquer jovem perdido à noite na imensidão da cidade grande:

Oh, anything I want he gives it to me
Anything I want he gives it, but not for free
It’s hateful
And it’s paid for and I’m so grateful to be nowhere.

A noite não é para os fracos… Nem para os desatentos!

Por Deus e pela Pátria

Ontem fui com minha namorada assistir ao filme “O Cavaleiro Solitário”. Mas de uns tempos pra cá, tenho certa “aversão” ao circuíto comercial, por ser extremamente repetitivo na temática, além da chatice de ir ao cinema num shopping qualquer e ver aquela gente bonita e feliz se entupindo de compras… Mas isso não importa agora!
Achei o filme interessante em certo sentido, ainda mais sabendo que Johnny Depp é descendente direto da tribo cherokee e dele interpretar nesse longa-metragem, um índio comanche chamado Tonto…Tudo bem apesar das diferenças tribais!
Em alguma momento da película, uma cena me chamou atenção em especial: um general precisa entrar em confronto com a tribo que está se aproximando da linha de trem, que foi construída em território indígena, e esse fato rompeu um acordo entre homens brancos e índios. Com a aproximação dos guerreiros comanches, o general diz: “Por Deus e pela Pátria”, fazendo um ataque que dizima o grupo.
Ao sair do cinema, comentei com minha companheira sobre essa cena específica e fiquei pensando que na nossa história recente, o progresso passou a galope sobre nossas cabeças, e principalmente daqueles que não são ditos como padrões numa “cultura” com senso urbano “sofisticado” e pensamento desenvolvimentista até a medula.
Depois da sessão precisava voltar para casa, então ela me deu carona até a Avenida Paulista e eu desci tranquilamente pela rua onde moro.
Ao cruzar uma esquina qualquer, um rapaz meio mancando, meio bêbado, subia na minha direção, mas nesse instante um casal de homossexuais que estava à minha frente foi abordado por ele.

– Tem alguma coisa?
– Só umas moedas pode ser?
– Deus tá vendo…
– Toma aqui…
– Obrigado, e Deus tá olhando por vocês…

O rapaz parou na porta do bar e gritou para o atendente que queria um misto quente. Se ele foi atendido, eu não sei, porque continuei a caminhada.
Enquanto descia e me aproximava da rua Peixoto Gomide, um rapaz guardava uns carros em frente ao bar “A Loca” que é frequentado pelo público GLBT, além dos simpatizantes ou aqueles que estão de bobeira pela região. Nesse instante, percebi que dois casais, um de mulheres e outro de homens, entravam num carro que o “flanelinha” cuidava.

– E o dinheiro? Seus bando de bicha… Seus merda! Por isso todo mundo odeia bicha e sapatão, até deus! Filhos da puta!

Os gritos eram estridentes e o pessoal do bar ficou perplexo olhando o escândalo. O carro partiu, mas o rapaz continuava irritado. Fui passando um pouco mais rápido porque poderia sobrar pra mim, já que em momentos de fúria as pessoas realmente agridem qualquer um que estiver pelo caminho.
Morando um bom tempo no centro da cidade, já estou acostumado com a “diversidade” sexual e não me incomodo nenhum um pouco com casais homossexuais se abraçando ou beijando na minha frente. Eu não sei dizer se isso é normal ou não, mas pouco me importa. Se há uma busca por relacionamento e atração física, ou puramente amor sem nada demais, que mal há nisso? Se algumas pessoas soubessem que boa parte da História foi feita por gays (ou qualquer nome que se dê para isso), negros, judeus, islâmicos etc. Logo mudariam seu discurso de ódio e seriam um pouco mais tolerantes. O que por vezes é um avanço tremendo.
Ontem a noite mesmo refleti sobre os acontecimentos das cenas vistas, tanto no filme quanto na vida real, e me pergunto qual é a verdadeira noção de Deus: seria Ele um sádico e cruel, que vive feliz ao ver seus filhos criados à sua imagem e semelhança, cometendo atrocidades em Seu nome? Seria Alguém bondoso que olha por todos, de maneira igual, sem nenhum tipo de distinção? Ou apenas mais uma criação humana cheia de vícios e virtudes que flutua por aí, como quem não quer nada, e fica de “tocaia” esperando o momento certo de agir?
E a Pátria? Será alguém de patente militar qualquer, disposta a atacar aquilo que de alguma forma saia do padrão de funcionamento da hierarquia? Ou um território “paterno” que visa somente o progresso varonil acima de qualquer individuo?
Não sei ao certo se são essas perguntas que fazem o mundo girar, como também desconheço qualquer resposta possível. Contudo, para as perguntas tenho apenas uma resposta vazia: pela Pátria nós construímos um mundo intolerante; e por Deus, fazemos atos inimagináveis.
Entrando em casa fui recepcionado pela minha vira-lata que não tem pátria, quanto menos Deus. Acredito que ela está bem satisfeita assim…

Cosmopolita

Ontem precisava ir ao oftalmologista para uma consulta. Desde o dia em que descobri ser míope não largo meus óculos por nada nesse mundo. O exame estava marcado para às 14h40m. Então na noite anterior fui dormir um pouco mais cedo, para poder dormir mais e acordar mais tarde. Mas, quando tudo parecia estar sob controle, a veneziana ( é assim que se chama aquele troço pendurado do lado de fora da janela?) resolveu despencar. Tudo foi tão rápido que não consegui gritar e nisso avisar quem estava passando. Por sorte, a janela fica acima de um telhado. Porém, a moça do primeiro andar saiu desesperada na janela para ver o que tinha acontecido, pois o barulho foi tremendo. Alias, acho que ela pensou que era uma bomba: quando eu olhei para baixo para ver o estrago, ela olhou para cima e vi seu rosto pálido. De duas uma: ou estava maquiada em excesso parecendo manequim de funerária, ou realmente foi um susto daqueles. Logo eu interfonei para o zelador e avisei o que tinha acontecido. Prontamente ele avisou o rapaz da limpeza, que apareceu para ver se algo estava quebrado e pegou a pobre veneziana espatifada. Dos males o menor.
Como o consultório é próximo do prédio onde moro decidi ir a pé, assim não gastaria condução, além de dar uma volta e esticar o esqueleto.
Descendo a rua Augusta, que sem mais nem menos muda de nome para Martins Fontes, percebi uma movimentação diferente: havia uma passeata, na avenida Paulista, realizada pelos sindicatos. Nada mal, afinal de contas todos já sabiam antecipadamente quando seria, porquê seria, além do horário que aconteceria.
Contudo, sempre tem aqueles mesmos chatos de sempre que são contra qualquer coisa que atrapalhe sua “vidinha”.
Estava esperando no farol para atravessar o cruzamento próximo à Biblioteca Mário de Andrade, quando dois rapazes estavam conversando sobre a manifestação.

– Mas hoje é mais perigoso que das outras vezes. Fiquei sabendo que eles andam armados…
– É verdade. Melhor ir direto pra casa hoje, sem passar pela Paulista.
– E você continua morando na Penha?
– Claro, lá é nóis! A família inteira mora lá…
– Vamo naquele rolê?
– Suave… bóra!

Peguei o papo pelo meio, mas acho que estavam falando mal dos sindicatos. Enquanto atravessava pensei: qual a finalidade de alguém que trabalha no centro da cidade e está próximo ao metrô Anhangabaú (linha vermelha), ir até à Paulista (linha verde) para voltar para casa que fica na Penha (também linha vermelha)? É um mistério que nunca decifrei e nem pretendo.
Chegando ao prédio do consultório fui até a recepção para me identificar e pagar um cartão magnético para atravessar a catraca. Todavia, o negócio não funcionava e não liberava a minha passagem. Ou seja, tive que entrar pela saída: depositei o cartão num buraco qualquer, mas a catraca só girava no sentido inverso, então me contorci até conseguir passar. Peguei o elevador que estava abarrotado e todos olhavam para minha cara, pois tinham presenciado meu sofrimento, mas em nenhum momento foram solidários.
Cheguei ao consultório na hora marcada e percebi que na sala de espera tinha uma mesa com revistas das mais variadas possíveis: Veja (edição de Abril), Veja (edição de Maio), Veja (edição de Junho), além de um televisor ligado na Globo News, que naquele momento passava um tal de “Estudio i”.
Fiquei espiando o programa que parecia ser engraçadinho: uns comentaristas babacas, com uma apresentadora mais perdida que osso em boca de banguela. Entre uma pauta e outra, mostravam as manifestações pelo Brasil, e sempre que voltava ao estúdio, ao vivo, alguém deles comentava com “conhecimento” de causa sobre o tema e faziam algumas análises sobre “democracia”, “movimentos populares”, etc.
Enquanto me distraia o médico me chamou: fiz os exames e para minha felicidade a miopia estagnou. Como tudo foi rápido, decidi tomar um café no Shopping Light, que é ali próximo também.
Desci pela Quirino de Andrade e fui observando os transeuntes. Se existe uma coisa extremamente engraçada em São Paulo é observar as pessoas no centro da cidade: parecem formigas indo de cá para lá, lá para cá, algumas apressadas falando ao celular; outras andando tranquilamente; os batedores de carteira sempre parados ou fingindo estarem perdidos, etc. Sem contar os vendedores ambulantes, que naquela hora poderiam faturar muito devido ao movimento.
Notei que os nigerianos vendiam relógios, bolivianos faziam suas barracas para colocar à venda suas roupas típicas, além de estarem sempre acompanhados de suas flautas-mágicas… Um outro grupo vendia alguma coisa parecida com feijão, só que verde.

– Amigo, isso aí é o que?
– Quér quanto?
– É tingido?
– Não, faço um saquinho por três.

Acho que ele não me entendeu e vice-versa. Coisas da metrópole.
Já estava quase chegando ao shopping, quando me deparei com uns artistas de rua: uma dupla de “embolada”, vinda de não sei onde, que fazia umas rimas engraçadinhas com os espectadores. Trocavam sua arte, por um punhado de moedas. E nisso me veio na cabeça o conto do Franz Kafka chamado “Um artista da fome”…
Porque em São Paulo é assim: cosmopolita até a medula.
Os sul-coreanos escravizam bolivianos no Bom Retiro. Os bolivianos chegaram aqui, graças aos baianos, sergipanos, paranaenses, gaúchos, que construíram estradas, ruas, e que também são operadores do metrô ou motoristas de ônibus.
Aqui todos os gêneros, povos e credos se reúnem para serem explorados.

Fausto

Max estava descontente com os rumos de sua vida, desde a separação turbulenta pela qual passara, além da morte de seu único filho, vitima de um atropelamento. Então decidiu comprar uma arma e colocar tudo à prova, embora suasse frio todas as vezes que a empunhava em direção ao espelho simulando um disparo fatal em sua cabeça.
Certo dia, levantou bem cedo e começou a caminhar pela cidade para ganhar ânimo. Andando vagarosamente pela calçada se deparou com uma estação de metrô, então apalpou os bolsos procurando algumas moedas para pagar a passagem. Dentro da estação, desceu às escadas em direção à bilheteria, mas por desatenção tropeçou e viu seu minguado dinheiro voar em frente ao seus olhos, caindo na direção de um sapato de um homem velho. O homem estava vestido com um sobretudo preto, calças também pretas e um sapato recém engraxado que brilhava. Além disso, segurava uma bengala: a ponta inferior tinha a proteção de uma borracha grossa, já na parte superior um apoio para as mãos feitos de prata. Max ficou curioso com o sujeito que lhe devolvia o dinheiro.

– Obrigado pela moedas…
– Não há de que rapaz, mas presta atenção por onde anda…

E desceram mais um lance de escadas em direção à plataforma. Ficaram sentados no banco esperando por um bom tempo, até que Max observou o relógio da estação que estava parado.

– Ué, esqueceram de arrumar?
– Esquisito, mas o rapaz tem pressa do quê?
– Na verdade nenhuma… Estou à passeio!
– E o passeio quase lhe custou o dinheiro, andava com muita pressa… é preciso estar mais atento e sem rapidez nas pernas…
– Foi só um tropeço, poderia acontecer com qualquer um…
– Não poderia, já imaginou se o motorista do carro que atropelou seu filho estivesse menos apressado também?!

Max gelou ao ouvir a frase do velho, que balançava sua bengala como um pêndulo. Então as lembranças vieram a sua mente: o atropelamento de seu filho causado por excesso de velocidade, e que nada pudera fazer para salvar a criança. Max estava ao lado do filho no momento do acidente e só pode encostar no corpo todo moído, e chorar copiosamente sobre ele. O velho sabia de tudo que se passava com Max, pois o observava desde os tempos de infância.

– Como você sabe da minha vida?
– Eu vi…
– Você nunca esteve lá…
– Não precisei,você sempre me contou tudo: quando duvidava das coisas ao seu redor…

O relógio da estação voltou a funcionar com o ponteiro dos segundos dando uma caminhadas sobre as horas. O trem passou e os dois embarcaram. Max não entendia as intenções do velho. Os dois sentaram separados, ficando frente à frente dentro do vagão.

– Ahh, não entendo…
– Não precisa entender, e sim, perguntar como estou aqui, além do porque sempre estive ao seu lado nos piores momentos.

O metrô saiu da plataforma e ganhou velocidade pelos trilhos indo em direção ao túnel. Quando as luzes se apagaram Max ouviu um assobio distante que logo cessou. As luzes voltaram quando chegaram na estação seguinte. Uma multidão estava esperando do lado de fora. Max se deu conta que o velho se aproveitou da escuridão e foi sentar-se ao seu lado.

– Apenas precisa descobrir o que sempre lhe causou dúvidas…

Após dizer isso o velho caminhou em direção à porta do vagão indo de encontro aos passageiros que queriam entrar. Sumiu no meio deles, Max continuou sentado sem mais conseguir vê-lo. Decidiu continuar até a próxima estação e saltar, voltando para casa a pé.
Enquanto andava pelas ruas ia pensando naquele encontro com o velho misterioso. Até aquele momento as peças não se encaixavam. Quando deu por si já estava na porta do prédio onde morava e deu um sinal com a mão para o porteiro, que abriu a porta, entregando-lhe uma correspondência: era uma carta da sua ex-mulher. Ele pegou o envelope e se dirigiu para o elevador. No meio do caminho encontrou com a síndica do prédio, embora não se lembrasse quem era. Como não queria assunto fingiu que não viu e apenas olhava atento os números dos andares por onde o elevador passava. Ele pegou o elevador e desceu no sexto andar, caminhou vagarosamente pelo corredor até chegar ao apartamento 606 e abriu a porta com tamanho desânimo que até o envelope caíra de sua mão. Abaixo-se para apanhá-lo e nesse instante sentiu um vento frio passando por sua nuca, mas as janelas estavam fechadas, além do mais o corredor não tinha qualquer fresta para passagem de ar. Levantou-se e entrou no apartamento, acendeu a luz e caminhou até o sofá para ler a carta: começou, mas não terminou. Apenas olhou para assinatura de Katharina. Jogou o papel sobre a mesa, que estava completamente cheia de livros e revistas.

– Não há mais nada para ser feito. O que deveria fazer não fiz e agora… Agora… Bem, não sei o que será…

Max pegou a carteira de cigarros que estava na pilha de revistas, acendeu e começou a fumar. Se deu conta que as cinzas estavam caindo sobre os livros e abanou, revelando um livro por acaso: “O Pequeno Eyolf” de Ibsen. Max estava lendo a peça para tentar retomar a vida: na história o pequeno Eyolf sofre um acidente quando recém-nascido e seu pai planeja escrever um projeto de consciência humana sobre a responsabilidade. Depois, o pequeno filho morre afogado e o casal entre em crise conjugal. Mais ou menos como acontecera à Max e Katharina. Porém, na obra de Ibsen, o casal retoma o relacionamento superando a perda, e no caso de Max ocorreu o contrário.
Ele pegou o livro e começou a ler em voz alta entre uma tragada e outra para aliviar a solidão. Nesse momento, o interfone toca deixando Max surpreso, pois não esperava ninguém àquela hora da noite.

– Sr. Max, um homem chamado Wagner está aqui.
– Não conhece ninguém com esse nome…
– Ele disse que te conheceu hoje na estação…
– Certo… Peça para ele subir por gentileza.

Max estava confuso, não entendendo como o homem o encontrara. Enquanto pensava a campainha toca.

– A parte da peça sobre a “Senhora dos Ratos”? Você é bem previsível…
– Como é que…
– Posso entrar?!
– Por favor, mas…
– Cuidado com os livros!
– É…

E Wagner sentou-se no sofá e estava vestido da mesma forma do encontro pela manhã. Max ofereceu um café para ele, que não aceitou e pediu uma cerveja.

– Anda muito quente por aqui esses dias, café me tiraria o sono e por sinal já passam das dez horas.
– É verdade… Como descobriu onde eu moro?
– Eu te segui.
– Impossível. O senhor desceu…
– Esqueça o Senhor, tudo bem!?
– Sim. Você desceu naquela estação e pelo que lembro sumiu na multidão!
– Na verdade foi um truque bem esperto: eu apenas dei a volta pelos que entravam. Fui até a porta no fundo do vagão e de lá pude observá-lo.
– Mas com essa bengala…
– Bem, se existe uma coisa que as pessoas ainda sentem piedade são dos velhos não?! É fácil enganar todo mundo com cara de boas intenções… Além do mais esquecem que os canalhas também envelhecem!
– É verdade. Mas por que veio?
– Nada demais. Nossa conversa foi muito curta.
– Você disse que me observava desde minha infância. Como pôde?
– Bem, é uma longa história. Você era o melhor aluno do colégio, mas ao mesmo tempo o mais excluído. Senti um potencial diferente em você…
– Nenhum potencial por sinal, tanto que tornei-me filósofo…
– E disso não há diferença com os demais da sua turma?
– Acho que não, mas também não sei como eles estão…
– Também os observei esse tempos e nada de produtivo saiu deles. Exceto dois ou três.
– Entendo. Mais uma cerveja?
– Aceito.
– Continue, fiquei curioso. Alias, como me observa tanto se eu nunca pude notá-lo?
– Engraçado isso, mas estou sempre por perto e quase não me notam. Acho que alguns estão cegos ou perderam a razão.
– Mas quando disse que eu lhe contava tudo, que nunca mentia, sempre duvidava das coisas…
– Caro Max, as suas dúvidas sempre me fortaleceram em certo aspecto. Quando você se tornou um rebelde contra os dogmas da religião de seus pais, isso ficou claro para mim…
– Eu não me rebelei, apenas não concordava com aquilo que me era imposto… “Isso” se refere ao quê, por exemplo?
– Pois bem, quando você negou a impostura daquilo que não acreditava, se viu sozinho, correto?! “Isso” se refere à sua rebeldia…
– Sim, de certo modo meu círculo familiar era bem fechado…
– Pois é, e minha atenção sobre você dobrou, quando numa noite escura e fria, lia um livro e começou a se perguntar sobre a origem das coisas, da vida, etc.
– Certo, mas já faz tempo. Sobretudo com relação a vida: ainda há mais perguntas que respostas.
– Mas você duvidou do que tinha aprendido a vida inteira de forma dogmática, sem entender muito bem para que servia…
– Verdade. Da dúvida sem querer eu fiz minha razão, até ser posta à prova.
– Embora eu seja um defensor da razão de forma absoluta, creio que o excesso dela trouxe mais prejuízos ao homens do que benefícios…
– Vale uma discussão…
– Milhares de discussões…
– Mas qual é sua intenção com isso tudo?
– Boa pergunta rapaz! Antes de mais nada gostaria de dizer que gosto de cercar-me das melhores pessoas possíveis, para uma boa conversa e divagar sobre tudo.
– Melhores pessoas?
– Eu já vi muita coisa desde que pisei por aqui: o melhor e o pior da humanidade…
– Não entendo… dizendo assim até parece que viveu o suficiente para conhecer a tudo e a todos. E outra: de nada sabemos sobre o que nos reserva o futuro.
– Isso você tem razão: não sabemos nada sobre o futuro. Por isso me resguardo do que há de melhor no “por enquanto”. Todavia tenho uma ressalva para você: quando era jovem queria o futuro a qualquer preço, e hoje vendo seu presente não acredito que tenha acabado dessa forma…
– Foram os acasos, disso eu tenho certeza…
– Max, não foram os acasos que transformam sua vida foram as suas escolhas: o casamento com Kathárina até…
– Estranho, eu nunca disse que fui casado…
– Max, sem tolices! Você rezou sua infância inteira para expiar um pecado que nunca foi seu. Além do mais, para Aquele que você pedia perdão, nada fez por você. E numa noite qualquer me chamou uma única vez, e foi o bastante: queria conhecimento e eu apareci!
– Não pode ser! Não fiz nenhum pacto! Isso é absurdo! É ilusão!
– Max, assim acordará os vizinhos! Seja menos infantil e assustado! Não sou tão ruim quanto pensa…

Max desatou a chorar em desespero. A figura de Wagner não era fruto de sua imaginação desde a infância. A materialização era um acerto de contas, mas ele não podia mais com aquilo. Wagner ganhara vida a partir dele, mesmo que sempre tenha existido.

– Max, tenha calma que nada de ruim pode acontecer agora. Os dados já foram jogados outras vezes e você nem se deu conta!
– Mas não era por vontade minha.
– A sua vontade eu nunca movi um dedo para alterar. Eu apenas observava, e o via afundando com o passar dos anos. Mas nisso, não me coloque como culpado!
– Meu desejo era que nada disso tivesse acontecido.
– Eu sei… Eu sei!
– Eu não tive culpa pela morte do menino. Ele se desgrudou das minhas mãos…
– Max, não se cobre tanto. Foi uma fatalidade…
– Uma fatalidade que levou minha vida inteira naquele instante!
– Você só queria ter um filho para tratá-lo melhor do que foi tratado! Isso quase sempre acontece. Não é novidade no seu caso. Mas o que me causo espanto é nunca ter tentado outro nesse período.
– O meu casamento ficou em ruínas depois disso. Ela me culpava a todo momento, em qualquer briga corriqueira.
– E por que tentou suicídio?
– Eu não sei…
– Não minta!
– Eu queria apenas me desligar das coisas e do mundo. Isto já é o bastante!
– Você não morreria, no máximo ficaria agonizando numa cama qualquer. Suicídio é quase uma arte, somente os mais aptos conseguem realizar…
– Eu tenho potencial…
– Disso eu nunca duvidei. Por isso estou aqui. Veja: como você pensa o pós-morte?
– Não sei. Mas desconfia que não exista Nada.
– Pois é, você está certo em partes. Deixe-me dizer umas palavras: sabe aquela história das boas e más pessoas que são divididas entre paraíso e trevas?
– Diga…
– Pois bem, que somente as pessoas boas vão para o paraíso e as más para a danação eterna?
– Hum…
– Você acha que eu apreciaria alguém incapaz de bons sentimentos?
– Não sei. Acho essa história um pouco confusa.
– Eu também. Mas os homens a criaram, logo é confuso, justamente porque detestam a verdade, não é mesmo?
– Disso está certo…
– A verdade não pode ser superficial: é preciso que se mostre as contradições para depois apresentá-la. Então vejamos, você acredita que qualquer pacto comigo será aceito?
– Acredito que nem haja pacto,somente uma confusão mental que cria algumas condições de sobrevivência e nos faz acreditar que temos alguma força sobrenatural ao nosso lado. E somente ao nosso lado…
– Você é bem perspicaz e não posso te enganar mesmo. Na realidade, não há pacto algum. Existe apenas a minha escolha de quem ficará ao meu lado. Não escolho qualquer coisa Max, também tenho meus gostos…
– Todos têm…
– E por isso eu te escolhi, porque sabia que não era um qualquer…
– Não sei se fico espantado, ou lisonjeado…
– Nenhuma das coisas, porque isso te faria pior que um pastor religioso que se sente acima dos outros por “compreender as palavras sagradas”. Eis o mistério da vida, Max, rejeitar a tirania! Como você bem sabe, eu fui o primeiro “rebelde” não?! E o que encontrei após essa decisão? A liberdade. E com ela descobri o conhecimento sobre todas as artes e todos os assuntos mundanos. O que você fez com sua liberdade? Se enforcou! Não soube fazer nada além de formar uma família, a coisa mais simples de todas. Qualquer sujeito completamente medíocre pode ter uma família.
– Eu tentei. Eu tentei… Mas seus conselhos não me atingem!
– Eu sei! Mas como eu disse: você não soube usar sua liberdade e entregou-se novamente à tirania, só que desta vez para a da família. Incrível!
– Pra mim já basta… Retire-se!
– Retiro-me. Abra a porta por favor. Saio somente por onde entrei sob permissão do anfitrião.

Wagner então levantou-se do sofá sempre observando as reações de Max que parecia perturbado. O velho caminhou até a porta e num longo aceno se despediu. Max bateu a porta e voltou ao sofá pegando a carta que estava jogada sobre a mesa, começou a ler e decidiu ligar para Kathárina que não estava em casa e transtornado caminhou até a escrivaninha para pegar o revolver, que já estava carregado, dentro da gaveta. Sentado no sofá acendeu outro cigarro e observava a arma que estava em seu poder. O revólver brilhava e as lágrimas escorriam sobre ela. Ele tentava de todas as formas se manter firme e não vacilar, mas sempre voltava à mente o desastre da família, o encontro com Wagner e a noite terrível que passou. Terminou o cigarro seguido de um longo suspiro e engatilhou o revólver.

– Weiter, weiter ins Verderben*

Colocou a arma na boca e disparou contra si mesmo sem a menor piedade . O corpo caiu para trás e os braços ficaram pendurados sobre as pernas. O revólver ainda soltava fumaça pelo cano, quando Wagner entrou novamente no apartamento. Apontou com sua bengala em direção à Max.

– Realmente você nunca foi um covarde e tinha potencial…

Uma semana se passou e Max acordou dentro de um quarto escuro, cheio de livros espalhados por diversas estantes. Observou o lugar sem se mexer da cama enquanto Wagner estava sentado em uma poltrona à sua frente lendo um livro.

– Já era hora…
– O que aconteceu?
– Não se lembra?
– Estava no meu apartamento quando peguei a arma e…
– Sim! Sim! Você não se acovardou e está novamente livre!
– Estou morto, isso sim!

Wagner fechou o livro que lia e depositou sobre a mesa que estava ao seu lado. Caminhou mais um pouco em direção à prateleira procurando por seu cachimbo.

– Morto?! Pior é ser esquecido. Estive lendo atentamente esses dias que se passaram, e eu tenho uma proposta para você: voltar à vida e transformá-la por completo, ou apenas viver as coisas de modo repetitivo e nunca morrer, sendo que todos os sofrimentos ou felicidades serão os mesmos eternamente…
– Proposta com apenas com opções pré-determinadas? Que liberdade estranha a sua. Não me parece justo…
– Entendo… Deixo ao seu critério como deve fazer. Entretanto, permita-me apenas uma observação?
– Claro…
– Não perca sua alma por qualquer coisa, ela é muito valiosa! Então deveria voltar e fazer tudo de novo. Você é único que pode mudar o rumo dos acontecimentos
– Não tenho alma. Não sei se estou disposto a retornar e mudar tudo. Estou exausto!
– Tamanha tolice!
– Por que me salvou?
– Porque você é valioso. Não quero inúteis ao meu lado. Procuro os sábios, não os imbecis. Esqueça tudo que ouviu ao meu respeito. Aqui é o reino da sabedoria, não o contrário!
– Tenta me corromper com frases confusas. Se não acredito em Deus, como acreditaria em você?
– Justamente porque você me criou quando não havia mais nada, e aqui estou eu salvando o resto de sua dignidade!
– Se eu o criei, eu mesmo darei seu fim!
– Pode se arrepender amargamente, além de nunca mais ter a resposta que sempre procurou. Max, você foi tolo uma vez atirando em si mesmo. Se me destruir irá encontrar a redenção. A tirania pesará sobre você!
– Por mil demônios, Wagner! Suma daqui! Mil vezes a redenção que suas propostas…
– Nunca se esqueça: Wir müssen lieben bis wir sterben!**
– Você não sabe o que é o amor, porque eu nunca soube…

Então ele sumiu deixando sua bengala para trás. Uma porta no fundo do quarto se abriu e com ela uma luz, que cegava Max.
Algumas trombetas soaram bem distantes: era a sua redenção. Então ele caminhou até a porta, embora não soubesse o motivo. Atravessou-a de um salto e encontrou um reino dominado pela tirania, com pessoas iguais a ele acorrentadas pelo pescoço: as correntes se interligavam chegando até uma nuvem superior que despejava ouro em abundância, mas ninguém poderia tocá-lo. Havia também algumas alamedas com árvores frutíferas, mas ninguém ousava colher. Os pássaros não cantavam, pois era proibida a felicidade. Alguns riachos cortavam a vegetação, todavia não era permitido banhar-se. A redenção significou a submissão.
Alguns anjos tomaram Max pelos braços e o prenderam igual aos outros. As suas roupas foram trocadas por um pano branco que significava a purificação. Entre os acorrentados, não havia qualquer tipo de comunicação e eram obrigados a fazer sempre as mesmas coisas. Enquanto era carregado pelos anjos, que o ensinavam o caminho da peregrinação, ele ouviu uma voz irritada e cansada, era Deus.

– Aqui estão os criminosos, suicidas, desajustados, degenerados, além dos tementes à mim! Vocês terão a eternidade para purificar suas almas! Ich werde immer bei dir sein!***

Deus falava alemão, desde a época da Reforma Protestante. Era cruel e vingativo. Wagner aprendeu alemão durante a Reforma Protestante, para entender as pregações do evangelho feitas por Lutero. Era culto e de bom trato. Max falava alemão desde a época dos estudos de filosofia.
Max entendeu a mensagem divina e não havia mais chance de mudança: entre a escolha de uma vida que poderia ser transformada, e outra banal sob a tirania, escolheu a segunda. Ficou cabisbaixo porque não tinha alma e passaria a eternidade inteira proibido de tudo e sem salvação alguma.

-Und das Atmen fällt mir, ach, so schwer
Weh mir, oh weh
Und die Vögel singen nicht mehr****…

*Além, além até a desgraça
**Devemos amar até morrer
***Eu vou estar com você para sempre
**** E o ar está óh tão pesado/Dói-me, óh dói-me/E os pássaros não cantam mais
(Rammstein)

Colcha de retalhos

Ricardo estava terminando a graduação em cinema, mas ainda não tinha experiência profissional na área. Faltavam apenas seis meses de aulas e sua amiga Renata deu um conselho para ele: envie seu currículo para as produtoras e minta um pouquinho sobre suas qualidades. E foi o que ele fez. Passados três meses uma produtora se interessou pela currículo elogiável do rapaz e lhe encaminhou uma proposta: escrever um roteiro simples para um curta-metragem que seria analisado e poderia concorrer num concurso. Ricardo ficou extasiado com a notícia e logo avisou Renata sobre o ocorrido.

– Agora acho que realmente posso mostrar todo meu potencial ao público.
– Sim, mas vá com calma porque esse “meio” é um pouco complicado. Todos querem estrelar e não começam por baixo… Se é que me entende.
– Como assim, por baixo?
– Fazendo o trabalho mais “sujo” no começo: escrevendo roteiros, operando câmeras… O mundo sem os holofotes.
– Ah, entendi. Pode ser interessante, mas logo despontarei. Quem viver verá…

É óbvio que Ricardo tinha capacidade para escrever um roteiro simples e enviar para a produtora. Mas alterou tanto suas qualidades profissionais que em nada condiziam com a realidade.
Apesar disso era um rapaz bem dedicado: sentava-se sempre três horas por dia no quartinho do apartamento onde ficava seu computador e escrevia sem parar. Com o passar das semanas o que era um simples história para um curta, nunca terminava, e sempre se alongava, sendo que em cada dia uma nova personagem aparecia para complicar ainda mais o desfecho.
Resolveu pediu o auxílio de Renata, que estava atarefada na pós-produção de um longa-metragem, já que ela trabalhava como estagiária em uma produtora concorrente a dele. Ele a telefonou para contar sobre o trabalho e como andava o roteiro.

– Bem, acho que são cinquenta páginas, mas ainda vou terminar.
– Cinquenta páginas? Você é prolixo ou o que?
– Bem, para um curta está muito longo, mas para um longa está muito curto…
– É claro, mas veja só. Seja sucinto e termine isso logo. Você vai precisar de no máximo dez páginas e olhe lá. Já fez a sinopse?
– Sim, foi a primeira coisa que fiz.
– Então começou do fim. Sobre o que fala isso afinal?
– É um curta-metragem experimental sobre ações performáticas.
– E você conseguiu escrever tantas páginas sobre performance…
– Um pouco, alias, precisava de um conselho: a história não tem clímax nem anti-clímax , porque o assunto não gera expectativas, além do que, quero fazer um filme não-linear…
– Ok! Mas para fazer um história não-linear, primeiro precisa saber fazer uma história linear, concorda!? É só um conselho… Faz o seguinte: quero que me envie hoje o material até à meia-noite. Faça tudo de novo, ou pegue os pontos principais de cada página reescrevendo. Tudo bem?!
– Sim, dá para fazer.

E foi feito. Ricardo pegou a ideia central do filme e recortou cada detalhe nas cinquenta páginas que havia escrito. Formou um imenso quebra-cabeças que nenhum mortal pudesse entender. Reduziu tudo para quinze páginas e cada cena ou descrição não tinha menor ligação com a anterior.

– Cinema não-linear…É isso aí! Quero realizar o caos nas imagens. Será algo novo nunca visto na história do cinema…

Renata recebeu o material e não entendeu absolutamente nada do que o amigo queria, mas mesmo assim o apoiou por pura “liberdade criativa”.
Ricardo enviou o roteiro para os produtores. Ele ficou apreensivo esperando por respostas até que no final do mês um deles ligou e confirmou sua vaga no estágio, além de participar do concurso. Ricardo não avisou ninguém sobre seu feito e foi trabalhar.
Na produtora Ricardo travou contato com gente mais experiente que ele e aprendeu um pouco mais sobre escrever roteiros. Enquanto isso, os direitos de seu roteiro foram comprados, pois ganhou o concurso de “Melhor Roteiro Independente”. Então ele foi convidado para participar das gravações do filme. O diretor elogiou o trabalho dele, mesmo sem entender nada do que estava filmando. Afinal de contas ele trabalhava na produtora e não tinha nada a declarar.
O filme foi lançado num festival e aclamado pela crítica e pelo público: que na realidade não entenderam nada do que estava se passando na tela, mas mesmo assim aplaudiram pela “qualidade estética” e “preocupação artística em lidar com os fenômenos existentes na vida que se relacionam com artes”. Ou seja, não havia nada, absolutamente nada de relevante nessa argumentação.
Ricardo passou de estagiário para assistente. Ao mesmo tempo em que subiu de cargo ele terminou a graduação. Renata que estava finalizando outro longa-metragem recebeu, meses depois a ligação do amigo.

– Poxa, realmente você tem talento Rick! Parabéns. Já começou a escrever outro roteiro?
– Ah, sim! Um sobre teatro experimental… Vou desconstruir as cenas em cada quadro de imagem. Fui convidado para ser co-diretor, então terei mais liberdade de criar agora.
– Um longa?
– Sim, já tenho duzentas páginas escritas, mas não pretendo realizar um filme, será um ensaio técnico filmado. Em outras palavras é um filme-teatro, com todos os problemas de encenação: desde os erros dos atores, até correção mais contundente do direito teatral.
– Nossa, haja fôlego! Espero que corra tudo bem…
– Logo mais será a estréia e aguardo você lá, já que no primeiro você não pode comparecer…
– Você não me avisou, mas desta vez com certeza estarei lá…

E desligaram o telefone. Tempos depois chegou o dia da estréia do filme, tudo bem encaminhado e organizado. Ricardo estava do lado de fora da sala do cinema e observava uma pequena movimentação para assistir ao seu filme: alguns artistas convidados com seus familiares,outros desavisados que entram em qualquer fila, gente do underground que só gosta de filmes independentes noruegueses, etc. Mas sentia falta de Renata que nem de longe parecia estar chegando ao local. Quando de repente ela aparece momentos antes do inicio da sessão.

– Desculpe-me! Vamos!?
– Sim, já vai começar…

Entraram na sala, as luzes se apagaram e o filme começou, todavia o martírio parecia não ter fim. Mais uma vez Ricardo pinçou o que de melhor tinha nos textos e montou uma colcha de retalhos cinematográfica. Renata já estava quase desistindo daquilo e cochichou para ele.

– Ricardo, o que é isso?
– Também não sei. Acho que ficou uma merda!
– Você me poupou de dizer isso…

E Ricardo sorriu e se levantou da cadeira. Aos berros chamou a atenção do projetista para terminar com aquilo. Disse também, que os presentes e pagantes seriam ressarcidos pelos danos causados: tanto financeiros quanto psicológicos. O público não entendeu, mas aplaudiu o diretor mesmo assim. Todos iam saindo, enquanto Ricardo e Renata conversavam na porta.

– Você é um pouco radical, não precisava terminar a sessão aos berros…
– Eu precisava disso. Acho que foi uma crise de consciência. Não posso enganar os outros. Preciso da minha dignidade de volta. Quatro horas e meia desse material não vale a pena…
– Se todos fossem assim, perderíamos menos tempo na ilha de edição…
– Pois é…
– Vamos jantar?
– Eu topo… onde?
– Em qualquer lugar aqui próximo.
– Vamos…

Chegaram no restaurante e encontraram duas pessoas que estavam na sessão: foram cumprimentados de pé e elogiados pelo trabalho. Ricardo tentou esclarecer a situação que provocou, mas não conseguiu porque o casal a todo momento abraçava-o. Ele foi ficando constrangido. O casal percebeu o inconveniente e decidiu ir embora, mas não sem antes pedir um próximo filme que fosse tão belo quanto esse. Ricardo acenou com a cabeça de forma positiva. Renata ria da situação.

– Você é o novo Messias do cinema…
– Espero que não me crucifiquem depois!
– Será que seriam capazes?
– Acho que sim, depende da próxima moda no cinema ou estilo de filmar. Quer vinho?
– Aceito.
– Posso te dizer uma coisa?
– Claro!
– Eu sempre te amei…
– Não vem com essa que você sabe que eu detesto finais felizes.

E o garçom foi chamado e trouxe rapidamente a garrafa de vinho. Os dois se embriagaram e conversaram a noite inteira. O dono do restaurante precisava fechar, então os dois saíram e ficaram sentados na guia da calçada em frente ao local, lembrando os tempos de faculdade. Ricardo pensava naquela conversa como a cena de um filme: com planos, sequências e cortes. Renata só queria estar ali e depois finalizar o filme com ele.

O gigante

O gigante Adamastor vivia tranquilamente no Cabo da Boa Esperança até ser atormentado pelas expedições portuguesas em seus territórios. Na luta feroz que travaram foi expulso sem a menor piedade do Oceano Índico e passou a vagar os séculos pelos mares buscando um local seguro e confortável, até que em meados do século XIX repousou no Oceano Atlântico, sob a permissão do titã Atlas.
Mas essa concessão era parte de um trato de várias cláusulas: a primeira delas dizia que Adamastor deveria zelar pelas terras do hemisfério sul, e a segunda, fazer com que os elementos naturais não castigassem a população. Adamastor aceitou as condições.
Feito o pacto, Adamastor poderia escolher uma porção de água para deitar-se próxima à linha do Equador, pois o clima era melhor para o descanso eterno e de lá conseguiria avistar qualquer perigo que sondasse as terras sob sua proteção. Perambulando pelas águas, percebeu a existência de um continente com uma sociedade independente de seus antigos colonizadores, que se organizavam politicamente como uma Monarquia.
Esse povo lutou contra aqueles que outrora também expulsaram o gigante de seus terras. Sendo assim, passou a nutrir simpatia pela população prometendo protegê-la de qualquer perigo, desde que ele fosse reverenciado. Nesse momento alguns pescadores ouviram as lamentações de Adamastor e voltaram rapidamente à costa para espalhar a notícia pela província. Porém, quase ninguém acreditou…
Exausto de tanto peregrinar, o gigante jogou seu pesado corpo sobre as águas cristalinas e quentes. Do impacto, uma onda enorme se formou e em contato com o fundo do oceano tornou-se pedra, formando assim uma ilha, que posteriormente seria chamada de “Ilha Adamastor”.
O povo assustado queria que o monarca soubesse da informação o mais rápido possível. E assim, organizaram uma caravana com destino ao Palácio Real.
A caravana, então se encontrou com o monarca e mesmo sob o temor do território estar na proteção de um gigante caçoaram da situação alegando que depender de forças sobre-humanas não era necessário naquele momento de liberdade. E por isso poderiam expulsá-lo. Mas o monarca, que era esperto, reuniu uma grande equipe: com seus secretários, amigos, escritores e tudo mais. Tendo em vista a realização de uma expedição para encontrar Adamastor que poderia ser um aliado importante para o futuro político da nação. Então, todos que estavam no Palácio cruzaram o território nacional passando pelas maiores adversidades naturais, até encontrar o repouso de Adamastor que ficava na região nordeste do país.
No encontro, uma cerimônia comemorativa foi realizada lembrando a Independência daquele povo. Todos ficaram satisfeitos com a festa, incluindo o gigante que descansava ao som dos alaúdes. Porém, a comitiva precisa convencê-lo a comprometer-se na causa de proteção, para tal ofereciam diversas recompensas que incluíam, desde não perturbá-lo sem motivo até a entrega de oferendas com sacrifícios humanos. Mas, Adamastor, que não era tolo, percebeu que aquilo estava cheio de mentiras. Então o monarca tomou a voz como protagonista da situação. Mas nada do que pediu era atendido. Sem perspectiva de um final positivo decidiu organizar a volta do pessoal ao Palácio.
Nesse instante, o gigante fez uma última proposta: queria que ao menos uma parte do hino fosse dedicada a ele, nada além disso. Os escritores boquiabertos com o pedido, começaram a compor uma saudação. Em vão… Adamastor não gostou de nenhuma, mas observando as tentativas de agradá-lo resolveu pactuar com o monarca e seus representantes. Os populares, não puderam receber as honras do gigante e apenas olhavam distantes o acontecimento. Tão logo fixaram os acordos, Adamastor retornou para ao descanso dizendo que não ocorreriam adversidades para àqueles que estavam presentes e participaram da cerimônia. A Monarquia se prestava à reverenciar o gigante.
E assim aconteceu: no caminho de volta nada de surpreendente aconteceu à caravana, exceto aos populares que foram ficando cansados no decorrer da viagem com alguns morrendo e outros gravemente doentes ou feridos.
Quando da chegada ao Palácio, o monarca tomou para si a incumbência de dar a notícia do pacto para a população chamando todos os jornais da época para publicarem o acontecido. No dia seguinte, para os poucos que sabiam ler, foi um motivo de festa sem limites e pelas províncias se organizaram diversas paradas para comemoração. A elite econômica, enfim, tinha um representante à altura naquele momento. Já para aqueles que não sabiam ler, ficou a dúvida se era bom ou ruim aquilo tudo e guardaram na lembrança apenas o alvoroço da chegada dos pescadores contando sobre o caso e assim não reverenciavam o gigante.
Os anos foram passando, o século mudou e nada de grave ocorreu contra aqueles que fizeram o pacto, além do mais, todas as promessas estavam sendo cumpridas tanto por Adamastor, quanto pelo monarca. Para os populares acontecia de tudo e mais um pouco. Contudo, a população pouco poderia fazer contra as forças a ela contrárias. Dessa forma, viviam pacificamente e apenas contavam os dias. Vez ou outra, algum grupo se rebelava, mas eram detidos pelas forças “gigantescas”. Com o aumento excessivo dos distúrbios, alguns descontentes militares com a monarquia e Adamastor decidiram agir, pois havia um certo temor com o que poderia acontecer à nação. Perspicazes, saíram em disparada ao encontro do gigante, levando uns cadernos com algumas anotações . Fizeram longos dias de viagem de viagem turbulenta.
Quando se depararam com a Ilha inerte passaram a provocá-la com insultos, além de dizerem das calamidades geradas pelo regime político. Adamastor enfurecido levantou-se do repouso: a terra começou a tremer e o mar dividiu-se em dezenas de partes. Apesar disso os militares não paravam de insultá-lo, mesmo com a terra se desfazendo e os mares em revolta. Nisso, um militar procurando refúgio aproximou-se de uma pedra, sem perceber que aquilo era uma parte do gigante. Furioso com aproximação, Adamastor movimentou seu longo braço na direção do grupo e agarrou aquela pequena criatura trazendo-a para sua boca. Os outros imploraram pela vida do sujeito, mas sem sucesso. O gigante tomado pela fúria jogava rajadas de vento na direção deles, que se mantinham firmes agarrados às árvores. O grupo precisa se manter vivo para poder fazer um novo acordo com aquela criatura. A fúria cessou quando um dos rapazes alcançou um caderno em sua bolsa presa à cintura e começou a declamar alguns versinhos enaltecendo o gigante. Após a declamação, a maré ficou mais calma, a terra não tremia mais e os ventos sopravam suaves.
Passado o susto, os militares tomaram os cadernos e apresentaram ao gigante as condições de um novo um pacto: criação de símbolos nacionais que remetessem diretamente a ele e sua “natureza”; inclusão dos versos declamados pelo jovem militar em um Hino, mudança de seu nome para Policarpo, por conta do novo momento; além de uma inscrição em uma bandeira que estabilizaria a nação para que ele descansasse eternamente.
Com tantas propostas a seu favor, o gigante não pôde negar o pacto, ainda que detestasse o novo nome a ele atribuído. Coçando a cabeça por conta de diversas dúvidas voltou para o fundo do oceano tornando-se novamente uma ilha, que passou a se chamar “Ilha de Policarpo”. Os militares conseguiram dobrar as virtudes dele e comemoraram. Passada a satisfação pela conquista, os vitoriosos voltaram para a capital da província sem qualquer adversidade pelo caminho.
Chegando na capital convocaram os jornais para anunciar o novo acordo. No dia seguinte, no meio de uma praça que estava completamente tomada pela população anunciaram um novo regime político que garantia a todos o direito da coisa pública, sobretudo àqueles excluídos pela monarquia. Entre aplausos e assobios, os letreiros dos estabelecimentos iam sendo modificados e tomado pelo furor do momento, um proprietário de terras bem conhecido da região anunciou uma festa para o final da semana, com todas as despesas pagas.
Enquanto isso, a população assistia a tudo um tanto desconfiada. Já a elite econômica via os novos representantes com bons olhos: passaram a reverenciar também o gigante, que antes era motivo de chacota.
No dia da festa militar se entoavam cantos que glorificavam a natureza e o povo dessa terra celebrando as novas conquistas. Durante o passeio da fanfarra militar pelas ruas da província os aplausos eram incessantes e o apelo sentimental dos cantos deixavam qualquer pessoa comovida, e assim, tomados por uma emoção febril sentiam-se parte daquele projeto, por mais que estivessem à margem, embora no final do festejo todos cantassem juntos o hino nacional.
E assim foi feita a coisa pública, sem a menor participação do público: um pacto entre um gigante sonolento e furioso com um grupo perspicaz de militares.
O gigante, pela própria natureza, permanece descansando em berço esplêndido, ao som do mar e à luz do céu profundo. Por vezes ele é lembrado para a população como forma de aviso ou advertência, pois não há motivo para ser contrário ao pacto, e caso assim proceda, o despertar de Policarpo será eminente: o gigante despertará de um sonho intenso para um raio vívido, destroçando as tentativas de penhor das igualdades.
E apesar dos filhos da terra não fugirem à luta, quem ousaria desafiar de próprio peito a morte?
Desde a infância até o leito de morte, aqueles que não fazem parte do acordo aprendem a manter a ordem para que o progresso seja realizado, enquanto os bosques ganham vida e o sol fulgure nos lindos campos com mais flores. Os símbolos “gigantescos” são sempre mencionados para manter união com Policarpo e assim deixá-lo risonho, pois ele mantem a clava forte erguida sobre filhos esquecidos, que bradam retumbantes, nesse solo tão gentil e garrido.