O gigante

O gigante Adamastor vivia tranquilamente no Cabo da Boa Esperança até ser atormentado pelas expedições portuguesas em seus territórios. Na luta feroz que travaram foi expulso sem a menor piedade do Oceano Índico e passou a vagar os séculos pelos mares buscando um local seguro e confortável, até que em meados do século XIX repousou no Oceano Atlântico, sob a permissão do titã Atlas.
Mas essa concessão era parte de um trato de várias cláusulas: a primeira delas dizia que Adamastor deveria zelar pelas terras do hemisfério sul, e a segunda, fazer com que os elementos naturais não castigassem a população. Adamastor aceitou as condições.
Feito o pacto, Adamastor poderia escolher uma porção de água para deitar-se próxima à linha do Equador, pois o clima era melhor para o descanso eterno e de lá conseguiria avistar qualquer perigo que sondasse as terras sob sua proteção. Perambulando pelas águas, percebeu a existência de um continente com uma sociedade independente de seus antigos colonizadores, que se organizavam politicamente como uma Monarquia.
Esse povo lutou contra aqueles que outrora também expulsaram o gigante de seus terras. Sendo assim, passou a nutrir simpatia pela população prometendo protegê-la de qualquer perigo, desde que ele fosse reverenciado. Nesse momento alguns pescadores ouviram as lamentações de Adamastor e voltaram rapidamente à costa para espalhar a notícia pela província. Porém, quase ninguém acreditou…
Exausto de tanto peregrinar, o gigante jogou seu pesado corpo sobre as águas cristalinas e quentes. Do impacto, uma onda enorme se formou e em contato com o fundo do oceano tornou-se pedra, formando assim uma ilha, que posteriormente seria chamada de “Ilha Adamastor”.
O povo assustado queria que o monarca soubesse da informação o mais rápido possível. E assim, organizaram uma caravana com destino ao Palácio Real.
A caravana, então se encontrou com o monarca e mesmo sob o temor do território estar na proteção de um gigante caçoaram da situação alegando que depender de forças sobre-humanas não era necessário naquele momento de liberdade. E por isso poderiam expulsá-lo. Mas o monarca, que era esperto, reuniu uma grande equipe: com seus secretários, amigos, escritores e tudo mais. Tendo em vista a realização de uma expedição para encontrar Adamastor que poderia ser um aliado importante para o futuro político da nação. Então, todos que estavam no Palácio cruzaram o território nacional passando pelas maiores adversidades naturais, até encontrar o repouso de Adamastor que ficava na região nordeste do país.
No encontro, uma cerimônia comemorativa foi realizada lembrando a Independência daquele povo. Todos ficaram satisfeitos com a festa, incluindo o gigante que descansava ao som dos alaúdes. Porém, a comitiva precisa convencê-lo a comprometer-se na causa de proteção, para tal ofereciam diversas recompensas que incluíam, desde não perturbá-lo sem motivo até a entrega de oferendas com sacrifícios humanos. Mas, Adamastor, que não era tolo, percebeu que aquilo estava cheio de mentiras. Então o monarca tomou a voz como protagonista da situação. Mas nada do que pediu era atendido. Sem perspectiva de um final positivo decidiu organizar a volta do pessoal ao Palácio.
Nesse instante, o gigante fez uma última proposta: queria que ao menos uma parte do hino fosse dedicada a ele, nada além disso. Os escritores boquiabertos com o pedido, começaram a compor uma saudação. Em vão… Adamastor não gostou de nenhuma, mas observando as tentativas de agradá-lo resolveu pactuar com o monarca e seus representantes. Os populares, não puderam receber as honras do gigante e apenas olhavam distantes o acontecimento. Tão logo fixaram os acordos, Adamastor retornou para ao descanso dizendo que não ocorreriam adversidades para àqueles que estavam presentes e participaram da cerimônia. A Monarquia se prestava à reverenciar o gigante.
E assim aconteceu: no caminho de volta nada de surpreendente aconteceu à caravana, exceto aos populares que foram ficando cansados no decorrer da viagem com alguns morrendo e outros gravemente doentes ou feridos.
Quando da chegada ao Palácio, o monarca tomou para si a incumbência de dar a notícia do pacto para a população chamando todos os jornais da época para publicarem o acontecido. No dia seguinte, para os poucos que sabiam ler, foi um motivo de festa sem limites e pelas províncias se organizaram diversas paradas para comemoração. A elite econômica, enfim, tinha um representante à altura naquele momento. Já para aqueles que não sabiam ler, ficou a dúvida se era bom ou ruim aquilo tudo e guardaram na lembrança apenas o alvoroço da chegada dos pescadores contando sobre o caso e assim não reverenciavam o gigante.
Os anos foram passando, o século mudou e nada de grave ocorreu contra aqueles que fizeram o pacto, além do mais, todas as promessas estavam sendo cumpridas tanto por Adamastor, quanto pelo monarca. Para os populares acontecia de tudo e mais um pouco. Contudo, a população pouco poderia fazer contra as forças a ela contrárias. Dessa forma, viviam pacificamente e apenas contavam os dias. Vez ou outra, algum grupo se rebelava, mas eram detidos pelas forças “gigantescas”. Com o aumento excessivo dos distúrbios, alguns descontentes militares com a monarquia e Adamastor decidiram agir, pois havia um certo temor com o que poderia acontecer à nação. Perspicazes, saíram em disparada ao encontro do gigante, levando uns cadernos com algumas anotações . Fizeram longos dias de viagem de viagem turbulenta.
Quando se depararam com a Ilha inerte passaram a provocá-la com insultos, além de dizerem das calamidades geradas pelo regime político. Adamastor enfurecido levantou-se do repouso: a terra começou a tremer e o mar dividiu-se em dezenas de partes. Apesar disso os militares não paravam de insultá-lo, mesmo com a terra se desfazendo e os mares em revolta. Nisso, um militar procurando refúgio aproximou-se de uma pedra, sem perceber que aquilo era uma parte do gigante. Furioso com aproximação, Adamastor movimentou seu longo braço na direção do grupo e agarrou aquela pequena criatura trazendo-a para sua boca. Os outros imploraram pela vida do sujeito, mas sem sucesso. O gigante tomado pela fúria jogava rajadas de vento na direção deles, que se mantinham firmes agarrados às árvores. O grupo precisa se manter vivo para poder fazer um novo acordo com aquela criatura. A fúria cessou quando um dos rapazes alcançou um caderno em sua bolsa presa à cintura e começou a declamar alguns versinhos enaltecendo o gigante. Após a declamação, a maré ficou mais calma, a terra não tremia mais e os ventos sopravam suaves.
Passado o susto, os militares tomaram os cadernos e apresentaram ao gigante as condições de um novo um pacto: criação de símbolos nacionais que remetessem diretamente a ele e sua “natureza”; inclusão dos versos declamados pelo jovem militar em um Hino, mudança de seu nome para Policarpo, por conta do novo momento; além de uma inscrição em uma bandeira que estabilizaria a nação para que ele descansasse eternamente.
Com tantas propostas a seu favor, o gigante não pôde negar o pacto, ainda que detestasse o novo nome a ele atribuído. Coçando a cabeça por conta de diversas dúvidas voltou para o fundo do oceano tornando-se novamente uma ilha, que passou a se chamar “Ilha de Policarpo”. Os militares conseguiram dobrar as virtudes dele e comemoraram. Passada a satisfação pela conquista, os vitoriosos voltaram para a capital da província sem qualquer adversidade pelo caminho.
Chegando na capital convocaram os jornais para anunciar o novo acordo. No dia seguinte, no meio de uma praça que estava completamente tomada pela população anunciaram um novo regime político que garantia a todos o direito da coisa pública, sobretudo àqueles excluídos pela monarquia. Entre aplausos e assobios, os letreiros dos estabelecimentos iam sendo modificados e tomado pelo furor do momento, um proprietário de terras bem conhecido da região anunciou uma festa para o final da semana, com todas as despesas pagas.
Enquanto isso, a população assistia a tudo um tanto desconfiada. Já a elite econômica via os novos representantes com bons olhos: passaram a reverenciar também o gigante, que antes era motivo de chacota.
No dia da festa militar se entoavam cantos que glorificavam a natureza e o povo dessa terra celebrando as novas conquistas. Durante o passeio da fanfarra militar pelas ruas da província os aplausos eram incessantes e o apelo sentimental dos cantos deixavam qualquer pessoa comovida, e assim, tomados por uma emoção febril sentiam-se parte daquele projeto, por mais que estivessem à margem, embora no final do festejo todos cantassem juntos o hino nacional.
E assim foi feita a coisa pública, sem a menor participação do público: um pacto entre um gigante sonolento e furioso com um grupo perspicaz de militares.
O gigante, pela própria natureza, permanece descansando em berço esplêndido, ao som do mar e à luz do céu profundo. Por vezes ele é lembrado para a população como forma de aviso ou advertência, pois não há motivo para ser contrário ao pacto, e caso assim proceda, o despertar de Policarpo será eminente: o gigante despertará de um sonho intenso para um raio vívido, destroçando as tentativas de penhor das igualdades.
E apesar dos filhos da terra não fugirem à luta, quem ousaria desafiar de próprio peito a morte?
Desde a infância até o leito de morte, aqueles que não fazem parte do acordo aprendem a manter a ordem para que o progresso seja realizado, enquanto os bosques ganham vida e o sol fulgure nos lindos campos com mais flores. Os símbolos “gigantescos” são sempre mencionados para manter união com Policarpo e assim deixá-lo risonho, pois ele mantem a clava forte erguida sobre filhos esquecidos, que bradam retumbantes, nesse solo tão gentil e garrido.

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