Certa vez, num sábado qualquer a noite estava sentado no sofá da sala assistindo televisão, trocava os canais por puro tédio, por não ter nada interessante passando naquele momento. Resolvi dar umas baforadas e levantei em direção à cozinha para buscar um maço de cigarros quando ouvi um barulho. Pensei que se tratava do vizinho de cima do meu apartamento, pelo tamanho impacto e proximidade do som. Por falar no meu apartamento, a janela da sala tem como vista privilegiada uma boate na Rua Augusta, no baixo centro de São Paulo.
Ah, Rua Augusta, o ambiente que nos finais de semana as “coisas” acontecem: “coisas” se tratam de qualquer tema da vida adulta como bebedeiras, sexo, drogas e por vezes um pouquinho de rock’n’roll. Antes porém, preciso deixar algo claro: o baixo centro da cidade é popularmente conhecido como “zona de meretrício”. Qualquer habitante do mundo sabe, ou deveria saber disso, pois são palavras mágicas: saíram da boca de um feiticeiro e de tanta repetição estão sob domínio do público, tanto dos crédulos como dos incrédulos. Também pudera, a cada trinta passos avista-se um bordel qualquer, apropriado para a recreação sexual (Desculpe-me, “tucanei” a putaria!): desfilam rapazes, garotas, travestis, hermafroditas, etc. Um leque de oportunidades para a satisfação!
Voltando ao assunto, coloquei meu cigarro aceso no canto da boca e olhei discretamente para o relógio na parede que marcava 00H15 e apesar de ser uma rua conhecida por sua agitação noturna, tudo estava tranquilo, na mais perfeita ordem. Mas onde tem muita tranquilidade e ordem, tudo pode e deve acontecer…
Sentado novamente no sofá, entre um trago e outro, começo a escutar duas vozes conversando. Mas a distância da janela da sala para a rua é enorme, então o volume do diálogo está baixo. Ainda mais que em frente há um terreno com uma construção e os tapumes abafam o som. Por sinal, em breve, o prédio tampará por completo minha visão para a calçada.
A conversa daquela distância parecia então, um sussurro que não se identificava, mas ao que tudo indicava deveria ser de um casal apaixonado trocando carícias. Enquanto os dois sussurravam, eu assistia a um filme tranquilamente, terminando meu cigarro e apagando a bituca no cinzeiro. Quase na mesma hora recebi a ligação da minha namorada querendo conversar sobre o dia tumultuado que tivera. Ficamos conversando, e papo-vai, papo-vem, quando ouço novamente um estrondo vindo da rua como se a porta de um carro fosse fechada com toda a força. Até aquele momento fiquei prestando atenção somente na minha conversa, e assim, completamente alheio ao mundo exterior. Só que o mundo externo nos proporciona momentos de distração terríveis, ainda mais se estamos ao telefone: a voz do outro lado some por completo transferindo nossa atenção para qualquer outra coisa.
A porta do carro batida poderia ser um sinal de nervosismo. Quer dizer, primeiramente eu suspeitei, mas logo soube da verdade: um homem resolveu gritar pela rua que havia sido enganado.
O destempero era tamanho que a cada palavra dita, uma vírgula de palavrões era utilizada. Não sou nenhum moralista a ponto de recriminar o uso tão corrente do palavreado de baixo-calão, mas utilizá-lo como vírgulas, ponto-vírgulas ou reticências é no mínimo esquisito. Mesmo escutando os berros, não havia entendido nada do que tanto reclamava. Pedi para minha namorada desligar o telefone e logo mais eu retornaria. É óbvio que estava curioso! Quem não estaria?
Feito isto fui até a janela para ouvir melhor o que se passava e rapidamente sou pego de surpresa por uma risada abafada vinda da rua parecendo ser de uma mulher. Pelo que entendi da gritaria do sujeito, ele a conheceu parada na esquina, conversaram um pouco e combinaram um “programinha”. Com a realização do trato, houve um pagamento adiantado. Apenas desconfio que isso está na origem da volúpia excessiva para conseguir o “material”. Logo depois de fecharem o acordo “carnal”, resolveram dar uma volta com o carro e procurar um “ninho de amor”: a donzela escolhida e o príncipe em seu mustang. Tudo de um jeito muito simples e minimalista.
Digo isso somente porque juntei o som que ouvi do primeiro impacto com o do segundo. Imaginei a situação e montei o cenário.
Mas voltando ao assunto da discussão, tamanha era a ferocidade do rapaz que poderia ser muito bem que ele tivera algum descontentamento com o serviço e estivesse cobrando satisfações do “cafetão”. O que seria muito justo! Se tudo estava certo, por que daria errado, não é mesmo? Pois é…
Confesso que naquela madrugada, também fui enganado e minhas considerações foram por água abaixo quando houve uma revelação surpreendente: não havia mulher alguma, e sim, um travesti!
Não vou “tucanar” o texto e dizer que era um transgênero, até porque conforme as afirmações do furioso sujeito, não havia nada de “trans”, e o “gênero” era bem definido.
Sob tamanha pressão, desespero e aflição, o rapaz gritava sem nenhuma timidez ou pudor, entre um palavrão e outro, que ela tinha um “pinto”! Mas, não era um pinto qualquer… Era um pinto com P maiúsculo!
Comecei a rir sem nenhuma piedade. E as lágrimas brotavam em meus olhos, e até acendi outro cigarro para contemplar a anunciação e festejar com os moradores dos outros prédios que saudavam nosso herói. Passada a crise de gargalhadas compreendi melhor o riso abafado e cínico da “moça”, que escutei momentos antes do berreiro ensandecido. Confesso que fiquei receoso pela “garota”, pois todos sabem que existem milhares de casos de violência contra prostitutas, travestis, etc. Sobretudo quando se está na mira de um sujeito extremamente irritadiço e totalmente exposto, que era ridicularizado por um dúzia de piadas das pessoas que saiam à janela para testemunhar a sua desgraça. Faltou apenas um choro infantil do falastrão para deixar a cena ainda mais surreal.
Cena tal que não vi, mas ouvi e disso montei o cenário completo.
Por sorte nada de mais grave ocorreu. O rapaz voltou para o carro, sem nenhum tostão de retorno. Daí eu pensei: caso ele seja casado algumas explicações sobre a falta do dinheiro terão que ser dadas e possíveis mentiras serão contadas; sendo solteiro (tomara que seja!), tende ser mais fácil reaver a quantia sem maiores explicações.
Não levou o dinheiro, e sim, o escárnio do travesti diante da situação bizarra que passaram. Levará também minhas singelas gargalhadas e lágrimas, além dos aplausos efusivos e irônicos dos espectadores. Aquele deve ter sido o pior dia da vida do sujeito. Um dia qualquer para o travesti. Um dia curioso para mim e os galhofeiros.
Depois de passada essa situação, eu penso o seguinte com os meus botões: será que nesse caso específico, o sujeito poderia requerer o Código de Defesa do Consumidor em alguma instituição especializada e procurar algum artigo, emenda, ou qualquer elemento jurídico, que pautasse seu dano em “propaganda enganosa”? Bem, acho que não… Não sei se há algum tipo de legislação específica que trate desse assunto: travesti, prostituição e propaganda enganosa na mesma construção sintática.
Pois bem…
Morar no centro da cidade é um espetáculo à parte: um teatro mambembe, com atores caricatos, além dos textos escritos pelos melhores autores!
Em tempo: não retornei a ligação, porque já era madrugada. Não poderia acordá-la para contar essa história, sem sombra de dúvidas ele iria odiar.